A cidade de Johanesbuego, na África do Sul, se assemelha muito com a minha querida São Paulo. Bons restaurantes, excelente infraestrutura rodoviária, parques, disponibilidade de aplicativos de transporte e delivery de comida, acomodações para todos os bolsos, shoppings centers, postos de combustáveis, mercados, assitência técnica, hospitais, lojas de esporte e aventura e etc. Poderia passar o dia decorrendo sobre os confortos que grandes centros urbanos possuem, contrapondo uma realidade muito distante de muitas cidades do interior de paises africanos e do mundo.
Retornar a uma cidade como Johanesburgo, após longas semanas convivendo com o desconforto, é indubitávelmente ganhar a capacidade de saborear confortos que se tornaram elementares e que grande parte da sociedade já não enxerga valor, como um banho quente, uma cama confortável, alimentos variados a disposição, boas estradas, internet e por ai vai. Atravesso justamente esse momento enquanto escrevo esse texto, muito embora esse fenómeno que acontece após enfrentar o desconforto seja transitório (infelizmente), razão pela qual insisto em conviver com o desconforto de tempos em tempos.
Percorri pouco mais de 5000km, em uma moto de 200CC, entre África do Sul, Botsuana e Zimbábue. Viajei da forma mais autosustentável possível carregando tudo que preciso para atravessar dias consecultivos sem a necessidade de obter suporte de uma cidade estruturada. Carreguei todo equipamento de camping (barraca, isolante térmico, saco de dormir, fogão, panelas e etc) e também alimentos que não fossem pereciveis, ou que fossem menos pereciveis possíveis.
E dessa forma cruzei a Botsuana do sul ao norte, atravessando por zonas remotas como a planície de Makgadikgadi e o parque nacional do Moremi.
No Zimbábue, cruzei o lago Kariba, mais de 500km em estradas sem qualquer estrutura, misturando cascalho, areia e terra. Cruzei provavelmente o único parque com a presença dos BIG-5 (elefante, rinoceronte, leão, leopardo e bufálo) que possibilita a entrada de motociclistas. Acampei em. escolas públicas na impossibilidade de continuar a viagem após escurecer, Houve dias que fiz apenas 1 refeição (água fervida com aveia). E houve, também, outros tantos dias sem tomar banho.
Provavelmente muitas pessoas que me seguem não compreendem a razão por eu me inserir, de forma discricionária, em ambientes tão escassos, desconfortáveis e duros. No entanto é através do desconforto que me sinto confortável.
É através do desconforto que consigo empregar as mudanças que necessito na minha vida. E é, também, através do desconforto, que atravesso por todas as reflexões que me conduziram a tantas mudanças. Assim como somente é possível ter coragem através do medo, somente é possível desfrutar o conforto em sua plenitude através do desconforto.
Os melhores banhos quentes sempre foram seguidos de dias chuvosos na natureza. Os melhores cafés foram seguidos de frio intenso que mal sentia as pontas dos meus dedos. O melhor aconchego de uma cama quente sempre foi seguido de dias desconfortáveis acampado em lugares remotos. A melhor apreciação da companhia de alguém sempre foi seguido de dias em completa solitude.
O desconforto tem muito mais a ensinar que o conforto e através dele podemos atravessar por experiências transformadoras. Nos tornamos mais resilientes e pacientes. Ao explorar as beiradas do conforto expandimos nossa consciência e descobrimos habilidades adormecidas e que jamais imáginavamos ter.
O excesso de conforto promovido pela sociedade moderna tem trazido substanciais problemas como depressão e ansiedade. Também nos tornamos mais frágeis frente aos desafios diários. As crianças sofrem diversos transtornos (são tantas siglas que não arrisco mencionar aqui). Se enfurecem na falta de um celular ou tablet novo. Nossos antepassados, acompanhando tudo que tem acontecido, certamente estão se revirando em seus túmulos.
Trânsitar pelo desconforto quando o conforto segue tão próximo e acessível é um escolha que precisa ser feita minuto a minuto. É preciso muita disciplina para não desistir frente aos primeiros desafios.
Logo na primeira semana, ainda atravessando o sul da Botsuana, acampei com temperaturas próximas a 0C (o que não seria um desáfio se estivesse adequadamente equipado). Antes de me embrulhar no saco de dormir, fervia água em uma garrafa pet para colocar dentro do saco buscando manter temperaturas mais agradáveis pelo menos até o ínicio da madrugada. Já ao amanhecer, combater o frio era uma tarefa árdua. Não sentia os pés e as mãos não possuiam sensibilidade. Buscava entre os arbustos os primeiros raios solares e desfrutava de um prazer imenso ao sentir o calor entrando pelo meu corpo.
Por todo o Zimbábue acompanhei homens, mulheres e crianças carregando baldes de ' água na cabeça na ausência de saneamento básico. Usualmente mulheres e crianças se encarregam da água e os homens buscam madeira para queimar com o intuito de cozinhar, esquentar água para o banho ou para manter animais selvagens afastados.
As crianças esbanjam felicidade ao encontrar forasteiros como eu. Sempre acenam quando passo em frente a vilas. Brincam com pneus velhos de carros e caminhões e se espantam em ver uma motocileta tão carregada (talvez devo parecer um extraterrestre).
Certa noite, acampado em uma pequena vila no sul do país, já próximo a fronteira com a África do Sul, acompanhei um belo entardecer e notei focos de fogueira espalhados pelo horizonte como forma de combater a escuridão. Neste dia escrevi em meu diário:
"Sai de Masvingo sentido a fronteira com a África do Sul. Um dia cheio como visita ao Great Zimbábue. Tinha planos de visitar um projeto mas decidi seguir sentido a fronteira. Parei em uma escola e pedi a diretora para dormir dentro da sala de aula. Após algumas ligações com o padre responsável fui autorizado a acampar. Um belo pôr do sol. A beleza está na simplicidade. No escuro vejo o fogo queimando das casas nas vilas. Não há eletricidade. Não há água corrente. A escola está localizada na frente da rodovia. Ouço o barulho dos caminhões indo e vindo da África do Sul. Na carência de eletricidade o céu se torna muito mais expoente. Logo no pôr do sol consegui ver Vênus."
O país atravessa uma crise há decadas. Há quem diga que é responsabilidade das sanções impostas pelo ocidente durante o regime do Robert Mugabe. Outros dizem que foi consequência da corrupção e de sucessivos erros na economia. O Zimbábue, embora pobre, possui um custo de vida altissimo devido a dolarização da economia como forma de enfrentar a inflação galopante. O litro do combustivel custa em torno de $1,60, sem dúvida um dos mais caros do continente. O país produz muito pouco e grande parte dos alimentos são importados. Embora o país não forneça dados oficiais, há rumores que a taxa de desemprego ronde os 90%. Como disse um local que conheci "não existe democracia em um páis com tamanho desemprego".
Ironicamente o Zimbábue é rico do ponto de vista de recursos naturais, assim como demais países africanos, com alta produção de ouro, diamantes e minério de ferro. Infelizmente tive a impressão que esses recursos estão sendo cedidos aos chineses e a população, portanto, pouco tem sido beneficiada.
Não tenho a pretenção de romantizar o desconforto ou até mesmo a vida dura das populações locais. Mas é inegável que o excesso de conforto e disponibilidade têm criado desafios a sociedade moderna e tem, principalmente, nos tornado mais egoistas, ápaticos. Não seria a hora de reavaliarmos isso?
Apesar de todo desconforto que sinto, não somente nessa expedição mas em tantas outras que provoquei ao longo de 3 anos na estrada, não houve sequer um minuto de arrependimento.
Muitas vezes precisamos enfrentar situações extremas para buscar experiências singualares. E sempre ao final de uma expedição, ao chegar no meu destino final, sou preenchido por um sentimento gigante de gratidão. Talvez eu consiga sentir um pouco do que grandes aventureiros sentem ao realizar planos ambiociosos. Essa espécie de dopamina que provamos é prazerosa, recompesado e altamente viciosa.
Gabriel Turano
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