Era Julho de 2022 e após sofrer um furto em Langkawi, uma ilha localizada no noroeste da Malásia, decidi seguir viagem ao norte até cruzar a fronteira com a Tailândia, que havia recentemente retirado as restrições devido ao COVID-19. Tailândia não era um destino inédito. Havia conhecido o país em uma breve passagem 8 anos atrás em férias corporativas.
Após viajar por 1 mês pelas belas ilhas e praias, o destino me levou novamente para Koh Tao, um pequeno paraíso no Golfo da Tailândia, que coincidentemente havia também visitado naquela breve passagem. A ilha foi utilizada como prisão politica na década de 40 contra opositores do regime atuante. Nesta época a comida, trazida do continente, era escassa e mortes oriundas de Malária eram comuns. Nos anos seguintes os prisioneiros foram liberados e a ilha permaneceu inabitada até que as primeiras comunidades de pescadores começaram a se instalar. Turistas somente começaram a visitar a ilha na década de 70 através de caronas com barcos pesqueiros. Fico imaginando como era este paraíso em uma época onde as praias eram amontoadas de ovos de tartarugas (Koh significa Ilha e Tao tartaruga). contrapondo, sem dúvida, os dias atuais.
Os primeiras balsas comerciais dedicadas a transportar pessoas e cargas somente iniciaram na década de 90, trazendo um fluxo maior de visitantes e fomentando a estrutura que viria a ser a que conhecemos hoje.
Koh Tao impressiona pela paisagens cênicas mas também pelo privilégio que a ilha possui quando falamos de mergulho.
São dezenas de pontos e quase todos em um raio de menos de 5km o que torna, também, os cursos de mergulho mais atrativos financeiramente. Recifes de corais, ainda resilientes frente as investidas das mudanças climáticas e turistas carentes de boas práticas, estão por todas as partes. Há pontos também de naufrágios, incluindo embarcações que lutaram durante a segunda guerra mundial,
Contrastando também com outras ilhas da região que são abarrotadas de turistas perseguindo festas, drogas e Rock & Roll (absolutamente nada contra, mas não é minha vibe), Koh Tao tem uma atmosfera mais tranquila, voltada basicamente aos praticamente de mergulho que a visitam de todas as partes do mundo, A criminalidade é inexistente. Scooters são estacionadas com as chaves no contato sem qualquer ameaça, As praias são limpas e zeladas pela própria comunidade local, outro contraste com as demais ilhas da região.
Desembarquei na ilha com o propósito de permanecer alguns dias até seguir viagem para os demais países do Sudeste Asiático. Felizmente tomei a iniciativa de fazer um mergulho por diversão com uma das operadoras locais. Embora houvesse me certificado no curso básico de mergulho na Colombia anos anteriores, já não mergulhava há bastante tempo. A experiência foi tão singular que tomei uma decisão: seguiria na ilha para fazer o primeiro curso profissional disponibilizado.
Mas o que é Dive Master?
Um Dive Master (Guia de Mergulho) é um profissional de mergulho com qualificações e habilidades avançadas, reconhecido em certificadoras de mergulho como PADI (Professional Association of Diving Instructors), SSI (Scuba Schools International), NAUI (National Association of Underwater Instructors) e outras. Em suma, é um líder de mergulho habilitado a conduzir clientes já certificados.
Claro que o trabalho impõe responsabilidades como liderança e orientação, segurança, boas práticas com o meio ambiente (promover praticas de mergulho sustentáveis e éticas para preservar os ecossistemas), manutenção de equipamentos, conhecimento teórico (teoria do mergulho incluindo física, fisiologia, equipamentos e planejamento de mergulho), orientação ambiental (fornecer informações sobre a vida marinha e características do ambiente), gerenciamento de grupos, garantindo que todos estejam cientes dos procedimentos e que sigam práticas seguras de mergulho e etc.
Para iniciar o curso de Dive Master é imperativo a obtenção do curso avançado de mergulho, resgate e primeiros socorros. É preciso ter genuina vocação. Embora não envolva pesados exercícios físicos, a rotina é cansativa. Nosso corpo também perde 30% mais rápido a temperatura debaixo d'água, aumentando substancialmente o consumo de energia para tentar manter a temperatura corporal. Há também enjoos pelo balanço do mar que podem aborrecer bastante.
Morando na Ilha
Sabendo da minha permanência estendida visto as atividades que envolveriam o curso de Dive Master, busquei uma acomodação para chamar de casa pelas próximas 7 semanas que se seguiriam. A ideia foi muito bem digerida. Viajava há mais de um ano e ter um aconchego longe de casa me soava bastante positivo. Dormir na mesma cama diariamente, tomar banho no mesmo banheiro, frequentar os mesmos lugares, confraternizar com rostos familiares e de quebra mergulhar literalmente diariamente me soava férias das férias,
E assim essa fase iniciou embora pouco ainda tivesse conhecimento do quanto a experiência me ensinaria nas semanas, meses e anos vindouros. E esses ensinamentos que tive são justamente os recados que quero ter a capacidade de transmitir através desse texto.
O Curso
Mas antes quero retratar um pouco melhor minha rotina na ilha. Basicamente acordava todos os dias por volta das 5:30am, tomava um rápido café da manhã (evitando cafeína para não enjoar no barco), seguia de scooter para a operadora de mergulho (ficava a poucos minutos da minha casa, como tudo na ilha), separava e preparava todos os equipamentos (incluindo dos clientes que teriam suas aulas com os instrutores), e carregava tudo ao barco com os demais colegas Dive Masters e instrutores.
No barco, durante as atividades de Dive Master, mergulhávamos em pares alternando os companheiros diariamente. Os pontos de mergulho também se alternavam, embora houvesse alguns mais presentes que outros. Basicamente fazíamos dois mergulhos pela manhã e quando disponível, participávamos também em mergulhos noturnos. Uma das funções do Dive Master durante o curso é auxiliar os instrutores com os mais variados tipos de cursos como Open Water, Advanced, Rescue, Try Scuba e etc. Apreciava bastante esses auxílios como fã de comportamento humano ao analisar as mais variadas reações dos alunos enquanto avançavam no curso.
Entre auxílios e mergulhos com os demais Dive Masters, era necessário participar das classes teóricas durante a tarde. Fisiologia, Física e Ciência do Mergulho são conhecimentos que precisamos adquirir para ganharmos a capacidade de sermos responsáveis por mergulhadores quando exercendo a função.
Claro que sobrava tempo para curtir uma praia no final da tarde, escrever, ler, estudar e aproveitar tudo que uma vida na ilha enseja.
Nas últimas semanas do curso, já aptos a guiar clientes elegidos pela escola, iniciamos a rotina com um profissional de mergulho. São clientes de várias partes do mundo e nossa responsabilidade, além de todas aqueles descritas acima, é faze-los desfrutar da experiência (sempre respeitando o meio-ambiente).
Contabilizei mais de 100 mergulhos durante as semanas que permaneci na ilha e sem dúvida hoje me sinto muito seguro para trabalhar como Dive Master ou simplesmente mergulhar por diversão em algum lugar do mundo. Enquanto finalizo esse texto, há tenho registrado mais de 250 mergulhões em lugares como Tailândia, Indonésia, Filipinas e Moçambique.
O maior aprendizado
Minha relação com o oceano mudou completamente. Também ganhei consciência das urgências que precisam ser endereçadas se quisermos protegermos este meio tão frágil e essencial a vida humana. Percebi o quanto este ambiente também é desconhecido das pessoas.
Graças ao curso me tornei ainda mais curioso sobre assuntos como mudanças climáticas e seus impactos no oceano, branqueamentos dos corais (coral bleaching), sobrepesca, práticas de turismo sustentáveis e seus impactos na comunidade.
Parafraseo um parágrafo do meu livro sobre o tema: "Quando trabalhei como guia de mergulho na Tailândia, criei uma relação muito diferente com o oceano. Visitar os mesmos pontos de mergulho todos os dias me fez entender que peixes, crustáceos e corais formam um ecossistema com suas próprias regras e rotinas. E, quando estamos sentados na areia da praia, há um vida intensa acontecendo a poucos metros de profundidade. Após algumas semanas trabalhando, sabia os locais onde encontrar as arraias, moreias, peixes-palhaço (nemos), e os animais que constantemente eu apreciava.
Tive a oportunidade meses depois em fazer mergulhos em Moçambique, Indonésia e Filipinas. Com um olhar um pouco mais cuidadoso, notei a indiferença que algumas operadoras de mergulho e principalmente clientes mal-informados possuem em direção aos animais e ao meio-ambiente, visando exclusivamente lucros e ignorando a dependência que tais lucros possuem desse mesmo meio que exploram.
As Filipinas, um arquipélago de mais de 7 mil ilhas, é privilegiado por pertencer ao "Triângulo de Coral" e ao cinturão de fogo. Ele refere-se à uma das regiões mais biodiversa e ricas em recifes de coral do mundo. É uma área retangular que cobre parte do Oceano Pacifico composta pelas Ilhas Salomão, Filipinas, Indonésia e Malásia.
Nas diversas regiões que mergulhei em Cebul e Siquijor, a situação dos corais é lamentável. Parte pela exploração excessiva através do turismo insustentável, mas principalmente pelo acidificação e aumento das temperaturas dos oceanos. São recifes que lutam para sobreviver mas já é possível notar cemitérios subaquáticos de corais que sucumbiram frente as ações humanas.
Ironicamente os corais estão presentes em pouco mais de 2% dos oceanos mas são responsáveis por mais de 25% da biodiversidade. Em menos de dois séculos estamos destruindo um ecossistema que esteve presente a mais de 250 milhões de anos. É possível que provoquemos a extinção total de espécies que sequer ainda foram descobertas haja visto que pouco ou quase nada conhecemos das profundezas dos oceanos. Hoje, inclusive, já existe um debate global pela mineração em aguas profundas para atender, paradoxalmente, a revolução verde que o mundo precisa atravessar e caso a atividade prossiga, é provável que destruiremos com um ecossistema pouco conhecido.
Queria poder transmitir o sentimento de mergulhar em recifes saudáveis e tão cheios de vida. Na indonésia, em uma ilha chamada Nusa Penida, fui ver de perto as lindas mantas em um ponto de mergulho conhecido como "Manta Point". As Mantas são animais socialmente complexos e que embora a ciência esteja avançando, ainda não sabemos muito sobre elas.
Em Tofu, uma pequena vila na costa de Moçambique, observei baleias Jubarte da praia e ainda nadei com o maior peixe do oceano, o tubarão-baleia. Em Malapáscua, uma ilha de pouco menos de 2.5km2 ao norte de Cebul, nas Filipinas, mergulhei com os lendários tubarões-raposa que visitam regularmente uma estação de limpeza para se livrarem de parasitas, permitindo que nós mergulhadores os apreciemos em rasas aguas rasas, antagonizando seu ambiente de aguas profundas.
Infelizmente é possível que as próximas gerações não conheçam essa pluralidade tão bela que nosso Planeta Terra possui (equivocadamente chamado de Planeta Terra visto que mais de 70% da composição é agua). É mais triste ainda pensar que sequer poderão sentir falta de algo que nunca presenciaram. Este fardo carregaremos nós. Minha geração poderá ser a geração que viu tudo acontecer mas decidiu não agir.
O curso de Dive Master me tornou um grande protetor do meio-ambiente, conservacionista amador e apaixonado ainda mais pela natureza. Também ganhei a. capacidade de refletir sobre o que experiencio e analisar mais minuciosamente se determinadas práticas de turismo são sustentáveis. Nós, turistas, temos uma missão dicotômica entre fomentar práticas sustentáveis e de preservação ou apoiar o turismo de massa extrativista e ecologicamente insustentável. A boa é má noticia é que depende nós.
Há reflexões também sobre a importância de equilibrar lucro com ações sustentáveis e preservação dos locais que são explorados. O mergulho possui relevância significante no turismo mundial e é responsável por mais de 2.2 milhões de empregos diretos e indiretos em todo mundo. A atividade também representa uma receita de mais de U$40 bilhões para os países e há expectativa que esses números ultrapassem os U$50 bilhões até 2025. Todos esses benefícios estão na beira do abismo com a deteriorização dos oceanos, sobrepesca, mudanças climáticas e o turismo de massa.
Praticadas equivocadas de operadores de mergulho que visam exclusivamente lucros têm colocado pressão no ambiente, conduzindo centenas e centenas de clientes diariamente aos mesmos pontos de mergulho. Também quase nada observei ações de suporte para com as comunidades locais através da educação ambiental, apoio profissional e trabalhos sociais. Os centros de mergulho são quase sempre gerenciados por estrangeiros haja vista que são os detentores de capital. E estes se apoderam das belezas naturais de países menos privilegiados em beneficio, e se "esquecem" de reverter para as comunidades parte das benesses adquiridas. Na Tailândia no hiato de 1 ano que estive mergulhando nos mesmos pontos de mergulho, testemunhei a massiva degradação dos corais. É desafiador definir o causador mas tenho plena convicção que além do efeito das mudanças climáticas, o excesso de mergulhadores mal instruídos causou uma pressão demasiada no ecossistema que sucumbiu devido nossas ações.
Preservar o meio ambiente é preservar a economia
Acredito no equilíbrio entre preservação e exploração visto que existem diversos exemplos ao redor do mundo. O capitalismo entendeu que as baleias são muito mais valiosas vivas do que em pratos de comida no Japão e outros países. Somente essa atividade movimenta mais de 4 bilhões ao ano e mais de 20mil empregos diretos ao redor do mundo. Infelizmente outros animais, como tubarões, não caíram no interesse do público e sua população continua sendo dizimada levando a beira da extinção diversas espécies.
Imagine o impacto da ausência dessas atividades na economia de países que possuem alta dependência do turismo? O que aconteceria com todos os empregos diretos e indiretos ensejados pela atividade ecológica? Há um potencial ainda gigante a ser explorado mas a preservação é condição imperativa para que mais países e comunidades sejam beneficiadas do turismo.
Tenho a convicção que quanto mais indivíduos envolvidos em atividades outdoors, seja mergulho ou uma trilha na montanha, mais conservacionistas teremos para a advogar pela causa. O conhecimento e a educação são caminhos imperativos para a preservação e ação.
O capital se bem revertido tem a importante função de transformação, preservação e recuperação de patrimônios naturais, mas se utilizado de maneira extrativista, assim como tem sido feito em diversas partes do mundo pela mineração, indústria da pesca e etc, nos conduzirá a caminhos sem retorno.
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