Viajar sempre me encantou pela possibilidade de desfrutar de perspectivas de vida que antagonizam a minha forma de pensar, agir e colaborar. Certa vez, ao pedir carona à beira da estrada no pequeno vilarejo de Todra Gordes, no Marrocos, fui convidado a um excelente diálogo pela gentileza de um motorista que me conduziu até o centro da cidade.
O carro dava indicações de que era seu lar atual. No banco traseiro, havia alguns travesseiros e cobertores, e no banco dianteiro, um cantil e uma xícara suja de borra de café, provavelmente desfrutada poucos minutos atrás. Ele reclamava que não conseguia recuperar dinheiro de sua conta australiana, país que fora sua residência por mais de 10 anos, pois a inteligência artificial do aplicativo do seu banco não reconhecia sua voz que ele me confessara que sua voz havia mudado drasticamente devido ao excesso de álcool e cigarro nos últimos meses
A Austrália, uma ex-colônia do Império Britânico e atualmente com alta demanda imigratória, pouco conseguiu manter as tradições de seus povos originários e perdeu quase que por completo sua cultura original. Este era, de acordo com o gentil motorista, um grande problema que não somente a Austrália atravessara, mas grande parte dos países ao redor do globo.
Ao refletir sobre tema e comparar com as experiências que atravessei ao longo da minha jornada pude corroborar com seu ponto de vista.
De fato, não há como contestar os benefícios trazidos pela globalização, não apenas no âmbito econômico, mas também social. Hoje, os países podem desfrutar da tecnologia, do acesso amplo a alimentos e da educação de países de ponta, entre tantos outros benefícios. O comércio internacional de mercadorias, realizado por grandes companhias de navegação, responsáveis por mais de 90% do comércio global, possibilitou o intercâmbio de produtos entre países de forma confiável e economicamente competitiva.
A tecnologia, inicialmente, encurtou as distâncias, trouxe comodidade e, até de certa forma, democratizou o conhecimento para aqueles interessados em absorvê-lo. Hoje, em poucos minutos, é possível obter informações sobre qualquer tema. Uma biblioteca digital está disponível com poucos cliques em nossos computadores ou celulares. Não há também o que discutir sobre esses benefícios. Eu mesmo sou um grande consumidor de conteúdo digital, e uma parte expressiva da minha curiosidade é saciada através de documentários de plataformas digitais.
Trazendo o tema para minha jornada, a tecnologia também facilitou a obtenção de informações sobre os países que atravesso. Crio roteiros e esclareço os desafios de transporte, acomodação e finanças por meio de informações que obtenho na internet. Faço todas as transferências bancárias por aplicativos e reservo minhas acomodações também por eles. Vejo a melhor forma de locomoção do ponto A para o ponto B através das experiências de outros viajantes na internet. Durante a pandemia, somente fui capaz de vencer todos os obstáculos burocráticos por conta da tecnologia.
Ao passo que a tecnologia trouxe todas as facilidades que conhecemos hoje, sinto uma nostalgia muito grande por tempos que não vivi. Às vezes me pego imaginando sobre viajantes das décadas de 70, 80 e 90. Nessa época, quando a tecnologia que conhecemos hoje ainda engatinhava, todos os problemas eram resolvidos através da criatividade, mas principalmente pelo contato humano entre pessoas. E isso deveria ser maravilhoso. Albergues eram um genuíno encontro entre autênticos viajantes que buscavam conhecimento através das próprias jornadas.
Viajamos para admirar o diferente. Ou pelo menos deveria ser assim. Vejo comumente pessoas atravessando o oceano em busca do conforto da familiaridade que possuem em casa. Ao fazerem isso, desconsideram a incrível oportunidade de experimentar o antagonismo, tão importante para combater o radicalismo da padronização dos tempos atuais.
Costumo dizer que o que torna o mundo tão incrível e singular é a pluralidade e a diversidade. A sensação de cruzar uma fronteira e se deparar com o antagônico é mágica. Seja no idioma, na gastronomia ou nos hábitos diários. Sinto-me transportado para um novo planeta, e a aprendizagem é constante na prática. Precisamos (re)aprender a lidar com o câmbio, com os costumes, com novos hábitos alimentares, e assim por diante. O encontro com a pluralidade é, inclusive, um antídoto poderoso contra o preconceito.
Do outro espectro da globalização, tema deste artigo, há malefícios e vícios que têm trazido à sociedade moderna problemas que ainda não sabemos como abordar. Vejo, por exemplo, o câncer da ostentação impregnado nas novas gerações, onde ter se tornou expressivamente mais importante do que ser. Já é comum ver no leste da África jovens da tribo massai vestidos com roupas de marcas como Nike e Adidas. Seu estilo de vida, transmitido de geração em geração, está sendo aniquilado.
Países que outrora eram tão ricos culturalmente, como Coreia do Sul e Japão, estão cada vez mais se assemelhando ao estilo de vida americano. As capitais dos países do Sudeste Asiático seguem o mesmo ritmo. A ilha de Bali, na Indonésia, que durante muitas décadas foi destino de viajantes em busca de espiritualidade e do estilo de vida local, agora é uma região quase controlada por europeus que fogem do alto custo de vida de seus países de origem e contaminam a cultura local ostentando suas roupas de grife e seu poder aquisitivo
Em uma das ruas de Ubud, famosa pelos campos de arroz, há a presença de franquias como KFC e Starbucks, além de diversas lojas de roupa de grife de origem americana e europeia. Os locais, que antes estavam acostumados a vestir roupas artesanais relativas à sua cultura, hoje optam por marcas de grifes internacionais. Além disso, houve um aumento significativo nos preços, tornando a vida das comunidades locais muito mais desafiadora.
Estrangeiros de países desenvolvidos, buscando fugir do alto custo de habitação, têm emigrado para países subdesenvolvidos mantendo o padrão salarial de seus países de origem. Ao fazerem isso, elevam os preços locais, beneficiando logicamente todos os serviços relacionados ao turismo, mas também tornando o custo de vida dos habitantes locais, que não estão ligados ao turismo, muito mais desafiador. Esse fenômeno, bastante recente, tem ocorrido na esteira da era digital em que estamos inseridos. Poucos anos atrás, seria inimaginável pensar em trabalhar em um local distante de sua base.
O turismo é acessível a poucas nacionalidades. No Brasil, por exemplo, apenas 1 em cada 10 brasileiros terá a oportunidade de viajar para o exterior. No continente africano, essa proporção é de menos de 3% de sua população. Enquanto isso, países como Holanda e Alemanha têm mais de 90% de sua população possuindo passaporte. Em 2023, a Holanda gastou mais de 72 bilhões de euros com turismo no exterior, enquanto a África do Sul, um país relativamente desenvolvido em comparação com seus vizinhos africanos, gastou apenas 5 bilhões de euros, mesmo tendo uma população 3,5 vezes maior que a da Holanda.
De fato, portanto, viajar é um privilégio de poucas nacionalidades. Pelas minhas andanças ao redor do globo, não consigo apontar um africano que conheci, que ainda reside no continente, desfrutando férias em outro país. Esse privilégio também não pertence aos asiáticos, em especial países do sudeste como Laos, Cambodia, Mianmar e etc. Não muito longe de nossas fronteiras, cruzar para outros países na perspectivas dos países da América Central remetem, quase que exclusivamente, ao sonho de trabalhar nos Estados Unidos. Os que conheci são imigrantes e que atualmente residem no velho continente. Portanto, não é difícil imaginar que todo o restante da população que não possui este acesso almejam estilo de vida parecido. Para grande parte desta massa, nem nos sonhos mais distantes esta a possibilidade de pisar no exterior para desfrutar de férias. Este sonho é sinônimo de trabalhar no exterior e eventualmente levar conforto aos familiares para os que permaneceram em seus países.
Durante muitos anos, houve o fenômeno do Êxodo Rural, com pessoas buscando melhores condições de vida nas grandes cidades por meio de trabalhos com remunerações mais atrativas. Com a chegada da tecnologia e da internet, mais recentemente o 5G, tornou-se possível trabalhar com qualidade, especialmente para aqueles que desenvolvem trabalhos administrativos, em qualquer lugar do mundo. No contexto desse avanço, as pessoas têm buscado mais qualidade de vida e proximidade com a natureza. Observa-se, portanto, um movimento talvez ainda tímido, mas com grande potencial, que é o Êxodo Urbano, com pessoas migrando das grandes cidades caóticas, violentas e cheias de problemas para lugares mais tranquilos, seja no campo, na montanha ou na praia.
Além de notar esse movimento cada vez mais forte, especialmente de europeus em países do Sudeste Asiático, é importante mencionar a elevação dos custos locais que esse movimento enseja. Tenho observado que a emigração de países privilegiados para países subdesenvolvidos tem se convertido na exportação de inflação, principalmente em segmentos como hospedagem e alimentação.
Tive duas experiências de vivência em uma pequena ilha no Golfo da Tailândia chamada Koh Tao. Na primeira vez que estive lá, em agosto de 2022, para cursar o Dive Master, aluguei um apartamento não muito longe da praia por um custo mensal de R$700,00. No período de um ano, com a retomada do turismo e a descoberta da ilha, principalmente por europeus, esse mesmo apartamento teve seu aluguel dobrado, tornando inviável a locação para pessoas que não possuem os mesmos privilégios de obter salários na Zona do Euro.
É indiscutível os benefícios que o turismo agrega onde ele é fomentado. Muitas regiões que conheci ao redor do mundo foram beneficiadas com o capital estrangeiro trazendo desenvolvimento e melhores condições de vida. No entanto, do lado oposto deste espectro, o movimento empurra os locais cada vez mais para áreas periféricas e eleva preços de alimentos, tornando a vida de todos que não vivem de turismo mais desafiadora. Características como essas são presentes, por exemplo, em lugares como Tailândia, Indonésia e Laos.
Este motorista do Marrocos que gentilmente me conduziu até o centro da cidade trouxe reflexões relevantes e embora sua vida esteja, de fato, mais difícil em seu país natal com a falta de oportunidade, renda média muito menor e todas os outros benefícios de morar em um país desenvolvido, me comentou que não possui qualquer intenção de retornar a Austrália. A ausência de autenticidade e, principalmente, a carência de relações genuínas entre as pessoas, foram fatores determinantes para sua decisão. Nossa viagem durou apenas 40 minutos, mas as reflexões trazidas se perpetuarão por longos anos.
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