Julho de 2021 - deixava o Brasil para uma das maiores aventuras da minha vida: buscava uma transformação pessoal por meio de experiências pouco ortodoxas.
Desde então, atravessei mais de 15 países. Contribuí para projetos sociais no Quênia e na Tanzânia. Fui voluntário em uma fazenda na África do Sul e no interior da Turquia. Estive na Etiópia durante a guerra civil entre o governo e os rebeldes e olhei de perto a pobreza em lugares como o Malawi, Suazilândia, Lesoto, Laos e Cambodia. Também me tornei "dive master" na Tailândia e trabalhei como guia de mergulho em uma das ilhas mais paradisíacas do mundo.
Desde o início, busquei viajar com propósito. Deixar uma vida estável e confortável no Brasil reclamava objetivos. Não procurava um período de férias, ou de descanso, mas sim uma revolução interna de tudo que fora apregoado por longos anos.
A sociedade moderna pouco lida com o contraditório, um sintoma da polarização ideológica e da radicalização de ideias. Inclusive creio que este é o paradoxo do século XXI: ao passo que conseguimos lograr sucesso na democratização da informação e do conhecimento, também nos tornamos mais alienados e pouco abertos ao antagônico.
Faço aqui, inclusive, "mea culpa" do aludido acima. Por muitos anos tive opiniões sectárias, em especial sobre políticas sociais e sistema de meritocracia.
Hoje vejo com clareza a razão deste passado: não conhecia a realidade de milhões de pessoas e, embora soubesse do abismo social que a humanidade enfrenta, não conhecia a verdadeira realidade delas e a dificuldade em prosperar sem as condições básicas que qualquer um de nós deveria ter, em especial a educação e a oportunidade. Por esta razão, políticas públicas visando à redução da pobreza e à distribuição de renda deveriam ser metas de qualquer governo. Bem, discutiremos mais desse tópico adiante.
Elenco abaixo as três maiores lições que aprendi durante minha jornada de autoconhecimento: .
MEUS PRIVILÉGIOS
Cresci em uma família de classe média, no ABC paulista. Durante a infância e adolescência, graças ao suporte dos meus pais, tive a oportunidade de estudar em escolas particulares, fugindo da realidade da baixa qualidade do ensino público brasileiro. Na faculdade, também ingressei em uma universidade particular bem ranqueada e, seguindo na esteira desses privilégios, aos 19 anos, embarquei em um intercâmbio na Austrália, seguido por mais dois de menor duração, na Costa Rica e no Peru.
Cresci com todas as condições de obter uma boa formação para garantir boa empregabilidade no mercado profissional.
E assim aconteceu: aos 26 anos, assumia um cargo de gerência em uma multinacional, posição que exerci até o início deste texto, quando deixei minha vida confortável e estável para esta trajetória atual de autoconhecimento.
Quando conheci a realidade de crianças e adolescentes na maior favela do continente africano, em Nairóbi, desconstruí muito do que acreditava. Afinal, somos um produto do nosso meio. Aquelas crianças e jovens são espelhos de uma realidade muito diferente daquela à qual pertenço. Sua educação é garantida graças a ONGS que, embora estejam longe de fornecer educação de qualidade, são a única fonte de esperança para uma geração inteira que vive à margem da sociedade.
Muitas delas frequentam a escola com o único objetivo de deixar as ruas e garantir, ao menos, duas refeições diárias. O desafio não termina aí: como garantir oportunidade no mercado profissional em um país que possui uma taxa de desemprego acima de 40% e vive a um passo do caos social? Viver o dia a dia desta realidade me remeteu às oportunidades que tive durante minha infância, adolescência e início da vida adulta. Tive meus estudos garantidos pelos meus pais.
Tive oportunidade de entrar em uma universidade e também de estudar fora do país. As crianças e jovens que vivem em comunidades ao redor do mundo não possuem esta oportunidade. A situação é acentuada em continentes como a África, por conta do racismo, extrativismo político, autoritarismo, falta de acesso a serviços básicos, etc.
Neste contexto, imagine discutir meritocracia com quem não obteve as mínimas condições para competir com alguém, por exemplo, como eu? Que reuni todas as condições necessárias para disputar posições em um mundo cada vez mais competitivo? Naturalmente as pessoas não escolhem onde nascem e em qual contexto e meio nasceram. Isso, de fato, não lhes é dado. O certo é que algumas possuem um ponto de partida muito mais favorável que outras. E isso tem a tendência de aumentar vertiginosamente ao longo do tempo, caso um esforço de política pública não seja feito.
Portanto, é necessária uma política pedagógica inicial como forma de frear essas diferenças. A manutenção desses abismos sociais possui implicações éticas, morais e sociais, haja visto que essas pessoas se expressam pelas urnas e, portanto, podem, facilmente, ser lubridiadas e encantadas pelo populismo, com promessas fadadas a não serem cumpridas.
Agora imagine que um cidadão médio malauiano, residente do 4° país mais pobre do mundo, consiga, por alguma razão, uma bolsa de estudos no exterior. Somente requisitar o passaporte com seu governo seria uma tarefa hercúlea.
Diferente de nós, para quem basta preencher um formulário, pagar uma taxa e buscar o passaporte na polícia federal, países autoritários como o Malawi não concedem passaportes à população em geral. Somente funcionários do governo e a elite do país possuem tal privilégio.
Imagine então que este mesmo cidadão consiga obter o passaporte. Como usá-lo para obter um visto em um país europeu, que requer milhões de comprovações, a um africano, para conceder uma permissão de visita? Pois é, este é outro privilégio que pouco enxergava. Sou privilegiado pelo acesso à educação, pelo passaporte que carrego. Sou privilegiado por ter nascido em uma família que me proporcionou as condições necessárias para competir em um mundo cada vez mais concorrido. Entender esse privilégio me trouxe responsabilidades que acreditava que não possuía. Como contribuir como cidadão para um mundo menos desigual?
2. Educação deve caminhar com oportunidade
O mundo alcançou a marca de mais de 8 bilhões de pessoas. Projeções indicam que chegaremos a 10 bilhões até o ano de 2050. A África, o continente mais desprivilegiado do mundo, está liderando este crescimento. Estima-se que a população do continente dobrará até o final do século, alcançando a marca de 3 bilhões de pessoas. A terra definitivamente nunca foi tão povoada como nos dias atuais. Junte-se a isso o fato da revolução tecnológica que atravessamos.
Em uma leitura recente, um texto me chamou a atenção. Hipoteticamente, se pegássemos alguém nascido no século XIII e o teletransportássemos ao século XV, poucas mudanças na vida cotidiana seriam notadas.
Mas se, ao invés disso, transportássemos alguém nascido no século XIX para o século XXI, provavelmente esta pessoa seria levada à loucura, devido à revolução que atravessamos em nossas vidas.
Este é justamente o desafio tecnológico que vivemos. Cada vez mais trabalhos são automatizados, ao passo que cada vez mais precisamos de mão-de- obra qualificada para preencher espaços, também, cada vez mais mais competitivos. Como incluir toda essa população em empregos remunerados?
Este, no meu ponto de vista, está entre um dos maiores desafios do século XXI. A educação, por si só, não basta como ferramenta para reduzir a pobreza e distribuir renda. Ela é, infelizmente, inócua, se não houver, de forma concomitante, a criação de oportunidades.
Aqui me permito usar novamente o exemplo de uma cidadão malauiano. Imagine que este cidadão consiga obter educação de qualidade, ir à universidade, aprender outros idiomas e prosperar do ponto de vista educacional. Se o país não é capaz de conceder oportunidade de trabalho, todo este investimento se torna inócuo. Para ilustrar este cenário, informo que 84% da população do Malawi vive em zona rural, portanto em trabalhos rurais e de pouca capacitação profissional.
Neste sentido, são de suma importância políticas públicas para atrair e fomentar investimento externo, competitividade de mercado e segurança jurídica. Implementar políticas liberais, mas progressistas do ponto de vista econômico em um continente cujo extrativismo político é tão presente, talvez seja o principal desafio a ser vencido.
3. Aceitar o revés não é sinal de fraqueza:
Em outro livro lido recentemente, uma frase me marcou bastante: “Nem tudo que é bom, é realmente bom, e nem tudo que é ruim, é necessariamente ruim”.
Eu tive a oportunidade de provar desta frase algumas vezes durante minha jornada. De fato é sempre muito desafiador compreender os revezes enquanto estamos ainda vivenciando-os, mas basta um hiato para tirarmos as lições e, mais do que isso, colocar na balança os ônus e os bônus do ocorrido.
Era março de 2022 e me encontrava em um país evitado por quase todas as pessoas atualmente: Etiópia. Devido aos confrontos entre o governo e os rebeldes de Tigray, o país atravessava uma sangrenta guerra civil, levando dezenas de pessoas à morte.
O governo, liderado pelo primeiro Ministro Abiy Ahmed, ganhador do prêmio Nobel da Paz em 2019, por colocar fim aos conflitos com a Eritreia, paradoxalmente estava utilizando a falta de alimentos como arma de guerra, levando a população civil à fome extrema no norte do país. Já viajava pelo país havia mais de duas semanas e me encontrava em uma região que até pouco tempo estava inabilitada, devido aos confrontos. Lalibela está localizada na região de Amhara, norte do país, e não possui energia elétrica, visto que foi cortada pelos rebeldes, quando estes chegaram à cidade.
Minha chegada foi dura. Na ausência de transporte público, havia conseguido uma carona com um caminhoneiro que passaria pela cidade. Após um longo dia de viagem, pedi uma comida duvidosa, que me conduziu a uma infecção alimentar, deixando- me "fora de combate" por quase 4 dias, em uma cidade sem nenhuma estrutura.
O hospital local, carente de eletricidade, pouco colaborou. Extremamente fraco, reuni a energia necessária para voar até a capital, Addis Ababa, com o intuito de tomar outro voo para Portugal, para me recuperar.
Por muito tempo questionei a decisão. Tinha planos de permanecer na África, inclusive visitar outros países após a Etiópia; no entanto, devido à infecção alimentar, optei por deixar o continente, preocupado com minha saúde. Esta decisão me conduziu a uma das experiências mais ricas e belas durante minha jornada. Já em Portugal, busquei por outros destinos para retomar minha aventura e escolhi o Nepal. Neste país, tive a oportunidade de alcançar o campo-base do Annapurna e, mais relevante do que isso, conectar-me com pessoas com quem mantenho contato até os dias atuais. Se não fosse essa intoxicação, não teria voado ao Nepal e, muito menos, feito as amizades que tive a oportunidade de fazer.
Concluindo...
Para finalizar esse artigo, entendi que a transformação pessoal não possui início, meio e fim. Ao contrário, é um organismo vivo e em constante mutação. Parafraseando Albert Einstein, “a mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original”. De fato, tornou-se muito desafiador conviver com o morno e com a singularidade. O que torna o mundo tão bonito e atraente é justamente sua pluralidade e diversidade. Nunca foi tão importante encarar o contraditório como forma de atenuar posições tão sectárias nos dias atuais. É preciso, mais do que nunca, olhar o diferente pela similaridade e não pelo antagônico, incompatível e inconvivível.
Por fim, entendi que direitos conquistados a árduos preços não são garantias vitalícias. É preciso estarmos atentos e vigilantes contra regimes autoritários disfarçados de ideologias, sejam quais forem. A centralização de poder é o maior risco de uma democracia. É, inclusive, a ascensão do autoritarismo.
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